Entre rosa e azul eu fico com o arco-íris

Sempre me achei uma pessoa equilibrada, mas vez ou outra e recebo demandas de realidade que me mostram que estou preso numa bolha. Gosto sempre de falar que tenho um psiquiatra gay e um psicólogo cristão pra ficar no equilíbrio, mas aprendi com a vida e com boas amizades que o equilíbrio é bambo e ele só acontece quando há tensão.

O equilibrista da corda bamba no circo só consegue atravessar a corda andando porque ela está muito bem esticada e ela só esta esticada porque ela está tensionada por duas forças contrárias entre si. Para atravessar de um lado ao outro os braços esticados, ou as vezes com o apoio de uma vara, fica perceptível que o equilíbrio que ele apresenta de forma impecável, acontece através do andar bambo. Como eu disse, o equilibro é bambo e só acontece na tensão.

Este texto que eu escrevo aqui é pra provocar tensão e achei importante essa introdução porque não queria que a tensão que eu proponho aqui seja vista de forma pejorativa.

Pois bem, falava da minha bolha e de como fico surpreso sempre que me percebo nela. Para mim algumas ideias infantis como "ideologia de gênero" já não fazem mais sentido, sequer pra fazer piada, quanto mais pra se levar a sério.

Mas daí eu sou confrontado com o fato de que esse termo ainda faz sentido na cabeça de muita gente e que tem realmente uma galera acreditando que existe uma organização internacional chamada "movimento LGBT", formada por pessoas que ficam pensando 24 horas por dia como arruinar o projeto de famílias que se entendem contempladas com o padrão cis-hétero, a famosa família tradicional brasileira. A gente ainda precisa dialogar com pessoas que acreditam no ideal da família dos comerciais de margarina ou mesmo sabendo que aquilo é utopia, tem esse vislumbre como de um horizonte a ser percorrido. Aqui no Brasil, como se percebe em toda a América Latina, a gente vê que o discurso evangélico tem forte responsabilidade nisso tudo!

A verdade dos fatos é que as vezes a gente precisa se propor a voltar algumas casas e tentar explicar, de forma dialogal que não tem ninguém querendo destruir família de ninguém! A gente precisa explicar que todo mundo tem pleno direito de ser feliz do jeito que é e que se uma família está autenticamente feliz sendo estável, cis-hétero e seguindo aos padrões, o tão temido "movimento LGBT" (que vale a pena dizer que é heterogêneo, diverso entre si e cheio de contradições internas) não perde 1 segundo se preocupando com vocês. Podem respirar descansados, tudo o que a gente quer é que vocês sejam felizes mesmos.

O que pessoas como eu, militantes pelo direito da comunidade LGBTI, querem é só assegurar que pessoas LGBTI, que por definição são diversas e diferentes desse padrão, não sofram e não sejam expostas à violência e opressão, como ao longo da história vem acontecendo. É importante deixar claro que o que acontece ao longo da história não é um movimento de pessoas diversas oprimindo as que estão no padrão, mas sim pessoas dentro desse padrão condenando, torturando, matando e violentando as pessoas diversas.

Pois bem, vamos aos acontecimentos recentes que motivam minha escrita aqui.

Tivemos uma líder evangélica influente no cenário religioso nacional, que agora está ministra da pasta presidencial que trata de direitos humanos no Brasil afirmar que "menino veste azul e menina veste rosa" insinuando que, a partir do atual governo e no que depender das responsabilidades públicas dela começa, como em suas próprias palavras, "uma nova era no Brasil". O objetivo do discurso dela é afirmar que agora, sob comando e tutela dela (a pastora), as agendas de promoção de visibilidade e afirmação de direitos de pessoas sexualmente diversas (seja em gênero ou sexualidade) não terá espaço dentro das propostas de agendas de promoção de políticas públicas que ela defenderá enquanto ministra. Pessoalmente não vejo motivo para dar ibope pra uma fala medíocre como essa, mas a partir dela surgiram diversas reflexões sobre identidade de gênero e sexualidade que tomaram conta dos temas em diálogo, tanto no lado evangélico quanto no lado LGBTIQ+

De todas, a que mais me incomoda são as falas de quem atribui aos pais a "culpa" pela sexualidade ou identidade de gênero diversa de suas filhas e filhos (e filhes), de forma a criar um ambiente de terror que faça que pais e mães se perguntem "onde foi que eu errei". Esses dias eu li que "o ensino de uma sexualidade saudável aos filhos não passa por esteriótipos, mas sim pela vivência amorosa e abertamente expressa da sexualidade dos pais". Essa fala isolada não é problemática em si, se não estivesse escrita em um contexto onde o autor sugere que "desde os primeiros dias de vida a criança percebe a qualidade do padrão relacional dos pais. [...] É preciso que o filho vivencie um relação de ternura entre os pais, que os veja se beijarem, se abraçarem, dizerem palavras carinhosas um para o outro, serem gentis, cúmplices e com disponibilidade de serviço (até sacrificial) pelo outro."

Qualquer tentativa de debate do ponto de vista científico, técnico ou da pesquisa, tem como premissa básica que se parta do mesmo pressuposto. Eu não sou psicólogo, nem psiquiatra e embora seja militante e pesquisador em saúde mental, além de estudante de licenciatura, que me coloca em profundos estudos em temas sobre educação, formação, desenvolvimento e aprendizagem, meu objetivo ao escrever aqui é antes de mais nada reconhecer que os pressupostos de escrita são distintos entre si e que isso torna o debate nessa perspectiva pouco profícuo e eficaz. Estamos partindo de lugares diferentes, estamos almejando horizontes diferentes e estamos percorrendo trajetórias diferentes, embora estamos falando sobre o mesmo tema.

A minha argumentação aqui nesse texto vai muito de encontro no que se refere às questões de como se escreveu, quais palavras foram escolhidas e quais as problemáticas de insinuar que lares onde os pais heterossexuais não troquem afeto diante das crianças são um celeiro de possibilidades de desfunções em identidade de gênero e sexualidade, considerando a manifestação de uma identidade diferente da cis-hétero como problemática e desfuncional.

As sugestões dessa fala são absurdas e eu vou tentar sistematizar aqui alguns elementos importantíssimos na tentativa de trazer luz e emancipar pais e mães que sofrem e se sentirem culpados por nos terem como filhas/filhos/filhes.

1 - Ser LGBTI não é um desvio!
Nós precisamos superar urgentemente as noções que temos de que uma expressão de gênero ou sexualidade diferente do cis-hétero é necessariamente um desvio ou uma patologia. Por favor, parem de nos considerar defeituosos, parem de nos considerar doentes, parem de achar que vocês precisam achar a origem do "erro" porque NÓS NÃO SOMOS ERRADOS(AS/ES). Diversidade não significa defeito e o fato de eu me expressar diferente de como você se expressa não me coloca no lugar de ERRO. Eu fico imaginando as mães e pais lendo o texto e se machucando com a reflexão de que "então é por isso que minha/meu filha/filho/filhe é assim", como se tivessem encontrado a "raiz" do problema ou como se a partir de agora pudessem justificar a razão por termos nos tornado quem somos. Enquanto essa mentalidade prevalecer nós vamos continuar machucando muita gente. Vamos continuar machucando nossas crianças, vamos continuar machucando nossas mães e pais. Parem, por favor, parem! Parem de tentar entender raiz ou origem, parem de tentar achar algum motivo. Nós somos assim e isso não é um problema. Não precisa tentar entender se nasceu desse jeito, se foi culpa de abuso sexual, se é porque o pai foi ausente, se é porque a mãe mimou de mais ou qualquer outra resposta pronta que se aprende nos cursos de cura e libertação da igreja! Nós não somos um erro!

2 - Não existe padrão na formação de identidade de sua/seu filha/o/e
Vou tentar me usar como exemplo. Sou o terceiro filho de um total de quatro. Tenho um mais novo e dois mais velhos. Vivemos sempre na mesma casa, com os mesmos pais. Eu sou homossexual, nenhum dos meus três irmãos é. Por que na mesma casa, com a mesma educação, só eu fui me tornar homossexual na família? Um dos meus irmãos mais velhos namorou 6 anos à distância, se casou com uma esposa incrível, se guardou até o casamento e é super bem resolvido com sua sexualidade, sua monogamia e sua identidade de gênero. Nós tivemos o mesmo pai, inclusive, nossa diferença de idade é de apenas 2 anos e 3 meses, ou seja, nossas fazes de desenvolvimento, desde à infância até a fase adulta, foram muito próximas e fomos expostos às mesmas questões. Por que só eu "dei errado"? Talvez justamente porque ser gay não é "dar errado". Vejam eu não estou propondo aqui que a família não tenha nada a ver com a formação de identidade da criança, tampouco excluindo a noção de que a forma com que fui criado é responsável por traços do meu caráter e personalidade, mas eu quero deixar claro que sou muito mais que isso (falarei disso mais no ponto 4). Não existe um padrão de como educar sua criança, a vida não vem com manual de instruções. A gente faz essa análise de que a identidade (gênero ou sexualidade) é consequência da quebra de padrão e a gente nem vê os problemas enormes que existem nesse suposto padrão. Meus pais, por exemplo, sempre foram muito afetuosos entre si e cá estou eu sendo gay para a glória de Cristo. Não havendo violência entre as relações, havendo honestidade e sinceridade de afeto, faço minhas as palavras do Lulu Santos que diz: "Consideramos justa TODA forma de amor". Imagina se todas as mães e pais tiverem que passar a se comportar na frente das crianças de uma forma diferente da qual se comportam naturalmente só porque "precisamos nos beijar na frente das crianças, se não elas vão ser homossexuais". Ei, tá muito errado isso aí. Ame a pessoa que é sua companheira da forma com que você se sente bem em amar e expressar e eu te garanto que isso é suficiente. Nem toda mãe e todo pai gosta de se beijar na frente das crianças, nem todo casal precisa ser "fofinho" como nos comerciais de margarina só pra mostrar pras crianças a ternura e amor. Ninguém tem que performar nada na frente de ninguém! Apenas ame. (ponto final)

3 - Nem todas as famílias fora desse padrão tem resultados fora do padrão estipulado
Aqui eu quero tornar visível as famílias que estão fora desse padrão trazido pelo texto. Mães solteiras, seja por divórcio, luto, ou porque decidiram serem livres sobre o próprio ventre. Pai e mãe que não são casados entre si e que tem outra pessoa como companheira (padrasto/madrasta). Crianças que foram educadas por avós, crianças que foram cuidadas por tias/tios e primas/primos. Enfim, todas as diversidades complexas no arranjo familiar que se possa imaginar aqui que não se sentem contempladas com "pai e mãe se beijando na frente das crianças". Retomo para esse ponto a fala do atual vice-presidente, general Mourão que, ainda na época de campanha disse algo como "lares que só tem mãe e avó são fábricas de marginais". A fala do texto que li não sugere que famílias fora do padrão sejam fábricas de marginais, mas insinua que famílias fora do padrão são "fábricas de LGBTI's ou pessoas com compulsão sexual". Nesse momento eu convido ao texto todas as pessoas que não foram criadas por pães e mães ao mesmo tempo, ou que tiveram em sua criação a participação intensa de outros atores (tia, avó, irmão, primo, etc) e que se entendem cis-heterossexuais. O que temos a dizer diante desses casos? A gente vai ficar em função de procurar algum tipo de desvio no comportamento sexual dessa pessoa só pra justificar nossa afirmação de que lares fora do padrão geram deficiências. A gente precisa superar essa noção de forma urgente. Assim como não existe padrão na formação da identidade da criança, no que tange a como a criança vai se desenvolver na sua identidade de gênero e/ou sexualidade, também não existe padrão no formato para criar uma criança. O padrão que existe é amor, dedicação e entrega! Imagino mães solteiras lendo esse texto e se culpando por terem aberto mão de seus relacionamentos abusivos e que possuem uma/um filha/filho/filhe LGBTI. Hey, mãe, mulher, você não é culpada de nada! Primeiro porque ser LGBTI não é um erro, segundo porque errado é ficar num relacionamento abusivo. Ser mãe solo não! Precisamos parar de ver a identidade LGBTI com uma perspectiva punitivista para famílias fora do padrão, primeiro porque ser LGBTI é uma dádiva que Deus nos dá e segundo porque chega de punir quem não segue o padrão só porque você segue.

4 - Eu sou muito mais do que o reflexo dos meus pais
Sei que existe toda uma abordagem dentro das incontáveis abordagens dentro da psicologia que fala sobre família, funções, padrões e tals e como eu disse ali em cima, eu realmente acredito que minha mãe e meu pai tiveram um papel fundamental na formação de quem eu sou hoje. Olha só, não acho que quem somos hoje depende só de nós. Aquela coisa que a gente aprende na antropologia pós-colonial de que identidade e alteridade são faces da mesma moeda é muito real. O que eu não acho, de forma alguma, é que a gente precisa justificar 100% da personalidade e caráter de uma pessoa na educação que ela teve. Inclusive, eu acho um enorme contrassenso pais e mães evangélicos falarem que filhos LGBTI são culpa de desfunção familiar e estarem assim com tanto medo de beijo gay na novela. O medo do beijo gay na novela só revela como vocês, famílias tradicionais brasileiras, são e se sentem extremamente frágeis e vulneráveis na educação de suas crianças. E olha só, tá tudo bem se sentir assim. O que me espanta é que se a família é tão importante assim na definição de identidade sexual de uma criança, deixa a novela pra lá! O mais importante nisso tudo aqui é a gente ter a noção de que uma identidade diversa não é culpa de ninguém porque (além dos outros motivos apontados acima) um sujeito é muito mais do que apenas o reflexo de sua família. A propósito, outro contrassenso forte nesse debate é quando nós, militantes pelos direitos humanos, afirmamos que a criminalização e marginalização do indivíduo é consequência de fatores sociais, culturais e econômicos e os "cidadãos de bem" vem com dedos pra cima de nós afirmando que o caráter é culpa apenas do indivíduo. Contextos de pai ausente, mães com jornada dupla, violência doméstica, drogadição na parentela próxima, baixíssimos índices de educação e profissionalização, mas agora, pra esse caso, a gente precisa culpar o indivíduo. Pois bem, faltam leituras para esse povo. Mas, tentando me ater ao debate proposto e sem divagar muito, é extremamente importante termos noção de que embora, sim, pais e mães tem importante papel na construção da identidade de suas crianças, eu sou muito mais do que uma réplica de comportamentos adquiridos por meus responsáveis. A gente tem tantos exemplos próximos para trazer nesse debate. É tão fundamental nos desvencilharmos desses referenciais retrógrados que só culpabilizam pais e mães em profundo martírio pelas filhas/filhos/filhes que tem. Chega! Eu sou gay e isso não é culpa de ninguém! Nem minha, muito menos da minha família.

5 - Não existe ideologia de gênero!
Eu resolvi deixar esse ponto para o final porque, embora a gente tenha falado um pouco disso lá no início, é importante a gente retomar e tentar deixar as coisas bem claras. Pessoal, não existe uma organização internacional tentando a todo custo destruir o que vocês construíram. Por favor, parem com isso! Enquanto a gente construir debates que olham a diversidade como uma "ideologia inimiga" nós só vamos continuar a reproduzir violência atrás de violência e isso tem que acabar. Ninguém quer que sua criança seja nada além do que ela é. Se sua criança é uma pessoa cis-heterossexual, dentro dos padrões que a gente sempre teve, ninguém na comunidade LGBTI tem qualquer intenção de mudar isso. Aliás, se sua criança for dentro do padrão, pode vestir de rosa, de azul ou até mesmo de arco-íris porque não vai ser esse tipo de detalhe que vai mudar qualquer coisa. Quando eu era religioso fervoroso da fé cristã (falo dessa forma porque continuo sendo cristão evangélico) eu também sempre via qualquer debate sobre diversidade como parte de uma ideologia que precisava ser reprimida, combatida e vencida. Sei inclusive que muitas pessoas vão ler esse meu texto com o nariz entortado e cheia de dedos diante do que escrevo, pensando em vários argumentos para contrapor e isso é muito triste. Isso foi triste na minha trajetória e só eu e Deus sabemos como repelir esse debate sobre diversidade só piorava minha saúde mental e me atormentava! Igreja, nós não queremos nada além de que a verdade liberte a todas as pessoas (João 8:32)! A verdade é Cristo (João 14:6) e Ele vem pra nos libertar de toda prisão. Existe uma comunidade enorme de pessoas diversas que estão sofrendo angustiadas em seus corpos e em suas comunidades porque não se aceitam da forma linda com que Deus as permitiu ser. Isso precisa acabar! Eu tenho orado pra que Deus toque o coração da igreja e derrame sobre nós um espírito de paz!

Bom, eu espero que esse texto seja luz no caminho de quem tem sofrido. Tanto pessoas LGBTIs quanto famílias dessas pessoas que se martirizam e sofrem por algo que Deus não pediu que sofrêssemos. Deus nos ama e celebra todas as cores possíveis da nossa diversidade! Que aprendamos a jubilar no Espírito a identidade que Ele nos deu, porque não importa como sejamos, somos amadas/amados/amades como filhas/filhos/filhes dEle!

Que o grande amor de Deus Pai/Mãe todo poderoso, a graça maravilhosa e salvadora de Jesus o filho, a comunhão e as consolações do Espírito Santo sejam sobre todxs nós! Não somente agora que nos libertamos da prisão da religiosidade, mas para todo o sempre. Amém!

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