Sobre esquizofrenia, Noemi e o direito de viver a angústia

Esse post foi, talvez, um dos posts mais difíceis de escrever. Li, reli, gostei e desgostei. Refiz, reescrevi. Esse parágrafo, que agora é o primeiro, foi na verdade gerado depois de todo o post ser escrito. Ainda é difícil falar sobre isso e as implicações, mas espero que em algum momento isso tudo faça sentido. Bom, espero que você compreenda e acolha cada letra digitada no meio de lágrimas e de muita dor… Então é isso, vamos lá:

Tudo o que existe no mundo real existe porque é percebido e sentido através do sistema cognitivo e dos aparelhos sensoriais. As coisas existem porque você consegue ouví-las, tocá-las, vê-las, sentir cheiro, etc… … Isso faz o mundo concreto ser o que é! Todas as outras coisas que existem, como sentimentos, emoções, ideias, entre outras coisas, são consideradas coisas abstratas!! O vento é real e concreto porque sente com o toque dele no seu corpo e porque o aroma da comida é sentido pelo olfato. Um bolo é real porque você sente tocar e porque se você mastigar você sente o sabor. Um travesseiro é real porque você sente o toque dele e se você bater nele com força o impacto do toque vai fazer barulho.

Bob, o que isso tem a ver com esquizofrenia?

Bom, as pessoas são reais na sua vida porque você consegue ouvir uma pessoa (não só a voz, mas também se ela bater palma ou pular com força no chão), você consegue tocar uma pessoa, você consegue ver uma pessoa. A esquizofrenia é uma disfunção no sistema cognitivo de uma pessoa de modo que ela passa a ouvir vozes e toma por existente e real a presença das vozes, mesmo que os outros aparelhos sensoriais (tato, visão, etc) não consigam completar essa função de existência. Nesse momento eu gostaria de pedir que você descontruísse todos os conceitos de filme que você tem de que uma pessoa esquizofrênica ouve vozes dentro da mente e ela fica ecoando e blablablá… Esquizofrenia é ouvir a voz como quem ouve o som que sai da tela preta chamada TV. Pelo menos é assim que tem sido comigo!! Eu não li grandes livros e grandes teóricos que abordam o tema, não sei se é sempre assim, se tem regra ou se tem uma classificação específica. Sei que a esquizofrenia acontece por diversos motivos, um deles é a exposição a um grande período de intenso desgaste somado a rompantes emocionais abruptos. A esquizofrenia é um problema de ordem cognitiva que pode ter uma justificativa fisiológica ou emocional. O uso do medicamento e o acompanhamento terapêutico deve fazer parte do tratamento.

E a teologia e a espiritualidade nesse caso? O que fazer com elas? Qual o lugar delas nisso tudo?

Bom, uma teologia que não atende às demandas de realidade e que não dialoga com as necessidades do presente e um exercício de espiritualidade que não vá de encontro com as experiências e experimentações que existem na minha vida são vazios, alienados e sem sentido. Minha teologia e minha espiritualidade precisam comunicar quem sou, dialogar com o lugar onde estou e atender às demandas de realidade e necessidade que tenho. E é com essa mentalidade que quero propor a leitura do livro de Rute, capítulo primeiro, dos versículos 18 ao 22.

“18 Quando Noemi viu que Rute estava de fato decidida a acompanhá-la, não insistiu mais.

19 Prosseguiram, pois, as duas até Belém. Ali chegando todo o povo ficou alvoroçado por causa delas. “Será que é Noemi?”, perguntavam as mulheres 20 Mas ela respondeu:

Não me chamem Noemi,

melhor que me chamem Mara,

pois o Todo-poderoso

tornou minha vida muito amarga!

21 De mãos cheias eu parti,

mas de mãos vazias

o Senhor me trouxe de volta.

Por que me chamam Noemi?

O Senhor colocou-se contra mim!

O Todo-poderoso me trouxe desgraça!”

22 Foi assim que Noemi voltou das terras de Moabe, com sua nora Rute, a moabita. Elas chegaram a Belém no início da colheita da cevada.

Rute 1: 18-22 (Nova Versão Internacional)

O atestado e a receita da psiquiatra não deixam negar. CID 10 F20 é o nome técnico, também conhecido como esquizofrenia. Esse é o meu diagnóstico, é contra isso que estou lutando todos os dias. Durante o tratamento, descubro que também estou com crise nervosa, surto de ansiedade e depressão profunda. É hora de fazer terapia, encontros semanais, toda quinta-feira de manhã.
Me encontro no olho de um furacão, quanta coisa aconteceu em tão pouco tempo. Coisas tão profundas e pessoais que não cabem nas palavras que aqui se fazem públicas. Fui afastado de todas as atividades. Estou passando o dia na cama, lutando com todas as forças pra controlar os surtos, acalmar meus ânimos e pra tentar ficar bem.

Nada muito imprevisível, espera-se isso mesmo de quem já teve Síndrome de Burnout e não reduziu a marcha! Meus mentores e amigos vinham avisando “Bob, é melhor você frear um pouco, seu rítmo está muito intenso. Você vai ficar doente”. Eu simplesmente não consegui lidar com a dor de tanta gente ao meu redor. É muita dor, é muita gente, tá muito difícil.

Paralelamente a isso, os boatos e a fofoca correm feito vento no meio da floresta, fazendo barulho a cada folha de árvore que esbarra, carregando consigo uma sentença a cada ouvido que passa. Infelizmente lidar com a fofoca virou rotina tão normal que quase pensei em não escrever isso aqui, afinal, quem se importa em tentar lidar ou tratar esse mal, ele já “faz parte” da nossa vida em comunidade. É assim e pronto. É hora de gritar pra um “povo alvoroçado” quem é que vem andando e como vem.

Resolvi tornar público meu diagnóstico e meu quadro atual. Resolvi fazer meu grito ser ouvido. É tempo de fazer as pessoas saberem o motivo da ausência, o motivo de estar distante e o motivo de eu não estar bem. Chega de fazer esse povo ficar alvoroçado se perguntando quem é que vem ao longe. Além disso, as experiêncais em público também não foram as melhores e já demonstraram muitas coisas. Crises no meio da rua, crises no meio da reunião da ABU, as pessoas já tem visto como estou. O Bob visivelmente não está bem, o que pode ter acontecido? Por que ele está fazendo esse movimento pra frente e pra trás com o corpo? Ele parece meio perturbado, o que é isso? Faz parte ver o povo alvoroçado agora, por isso, é tempo de responder a essa demanda.

“Já não me chamo ‘missionário Bob’, me chamo ‘Luiz Fernando’, pois o Todo-poderoso tornou minha vida muito amarga.”

É assim que tento caminhar hoje, lutando contra uma doença mental causada pelo acúmulo do desgaste que o ministério gerou e por decepções profundas que não foram bem administradas no caminho. Minha caminhada hoje é como a de alguém que volta cansado e depressivo, por ter entrado com todas as forças em uma “terra estranha”, chamada ministério, cheio de energia e de vontade, mas que, com o tempo, foi ficando de mãos vazias, sem mais nada a oferecer, sem mais nada para se sustentar, sem mais nada a compartilhar. O vazio que me encontro, faz desse “compartilhar” não mais um “com”, e sim um “sem”, por isso a transformação da situação faz desse compartilhar uma partilha, faz disso apenas um partilhar. A partilha de mãos vazias de quem morreu com as circunstâncias e de quem agora vive um luto que parece não ter fim. Foi assim que o Bob voltou da sua rotina intensa. Crise essa que chegou bem no início do tempo de bonança e abundância. “Ouvi falar que o Senhor tem abençoado o povo”. 2 obreiros, grupos fortes nos 3 estados, pioneirismo acontecendo, uma região que vive um precioso momento áureo de consolidação. É nesse contexto que eu volto de mãos vazias.

O texto de Rute citado, nos ensina sobre o direito de viver a dor, o direito de viver a angústia, nos ensina que muitas vezes as pessoas precisam se fazer ouvidas no que tange ao direito de viverem as dificuldades pelas quais elas passam. Chega de ditadura da felicidade, chega de conselhos rápidos para fazer Noemi ficar bem logo, chega de dizer que “A alegria do Senhor é nossa força”. CHEGA! Não me chame de Noemi, eu quero ter o direito de ser chamada de Mara.

“Mas, Bob, você não pode culpar Deus pelas suas atitudes e pelas suas decisões. Deus em nada é responsável pelo seu quadro atual. Muito pelo contrário ele tem cuidado de você.” Aprendi na missão que Deus não precisa de advogado, então você não precisa querer defendê-lo pra mim agora. Eu e Ele temos uma relação muito nossa e eu exijo o seu respeito. Deus está disposto a assumir toda a culpa que existe, por isso eu te garanto que Ele não vai deixar de ser Deus soberando só por assumir essa culpa que não consigo carregar hoje. Se você fosse minimamente empático, perceberia que esse texto não se trata de falar sobre Deus e sua vontade e soberania, mas se trata de falar sobre a minha dor e minha angústia!

Hoje, minha luta é conseguir dormir sem ouvir vozes, minha alegria é conseguir escrever esse post. Não consigo fazer grandes atividades, não consigo me concentrar por muito tempo. Esse post, na verdade, foi escrito ao longo de dias e quem me conhece sabe que já produzi mais em menos tempo. Não consigo mais fazer nem a única coisa que sempre me acalmou e me fez parar e conseguir abstrair ou seguir, ler (que é essa coisa que me acalmava) é um desafio quase utópico de ser alcançado. Cada linha que meus olhos percorrem o coração fica agitado, a mão começa a tremer, a perna começa a balançar e a crise nervosa toma conta. Minhas pequenas batalhas enfrentadas na rotina de uma pessoa que está doente e que parece adoecer mais, cada vez que percebe seu estado de invalidez. Eu estou doente e não preciso de versículos chaves, palavras proféticas de libertação, nem preciso de conselhos do que fazer! Eu só preciso ser acolhido como estou. É só isso que precisa acontecer!

Não sei quanto tempo isso tudo vai durar, não sei quão demorado e difícil vai ser esse processo, mas sei que hoje minha alegria é poder me concentrar pra escrever um parágrafo, minha alegria é ler 5 ou 6 linhas de um livro, minha alegria é conseguir sair das minhas crises. Me pego percebendo o quão abatido estou por estar assim, o quão triste, quão deprimido, quão derrotado. Me sinto completamente injustiçado, me sinto traído, me sinto abusado por aquele que me traiu e me fez estar no estado em que estou hoje e segue como se apenas mais um capítulo de sua vida se encerrasse. Me sinto diminuído enquanto homem, enquanto humano.

Nesse processo, é importante falar das amizades. Algumas decepções aconteceram, mas não esperava muito diferente. É engraçado e paradoxal ver como alguns daqueles a quem você mais dispensou atenção são, hoje, os que mais te ignoram e desprezam, os que menos te respeitam e te acolhem e os que conseguem retribuir toda a empatia, dedicação e investimento que outrora você ofereceu com rejeição, indiferença e altivez. Paradoxalmente ainda existem aqueles amigos a quem você pensa que poderia ter investido mais, poderia ter se aproximado mais, amigos que você pensa que poderia ter dispensado mais tempo. Amigos cujos encargos do cargo não afastam, ou que mesmo sem cargo assumem o encargo de ser amigo de um doente. Gratas surpresas como uma ligação de quem está longe, só pra saber como se está, uma presença que repousou no silêncio e ficou trocando olhares de solidariedade e acolhimento. Amigas que aceitam o desafio de te aturar por uma tarde de angústia e desespero falando coisas sem sentido e até mesmo sendo um pouco grosso devido a irritabilidade causada pela crise. Amigos que na angústia se mostram mais chegados que irmão. Sem falar do irmão que na angústia tem sido meu melhor amigo!! Gente que eu achei que tivesse ferido hoje sendo cura para minhas crises e gente que eu achei que tivesse sido alento hoje me ferindo! São paradoxos de quem vive uma vida que não é perfeita e é cheia de confusões, de contradições e de angústias. Vida de gente humana, gente que “nunca foi guerreiro ou herói”* gente “nunca foi certo nem sabe se pretende ser”**. Obrigado, amigos queridos, pelo amparo e pela presença. Obrigado pelo contato e pela proximidade.

* Alteração da letra Rojões de Os Arrais
** Alteração da letra Não Mais de Simonami

Eu vou ficar bem, o processo vai durar o tempo que precisar durar. Lutar contra a depressão é mais difícil do que pode parecer e estar com esquizofrenia não ajuda muito, mas vai passar! Sou meu maior ministério agora! Confesso que ainda doi muito não poder escrever tudo aqui, não poder me abrir completamente e falar da minha dor. Espero que isso melhore um dia, por mim e por tantos outros que sofrem calados em seu silêncio profundo sem encontrar na comunidade espaço aberto para falar da dor e serem acolhidos. É desafiador ser uma comunidade secreta cheia de segredos dentro da comunidade, mas  por enquanto é assim que seguimos… ou tentamos seguir…

Comentários

  1. Obrigado por partilhar a tua dor e a tua angústia. Ao fazê-lo, de alguma maneira inexplicável elas agora são também a minha dor e a minha angústia. Um abraço fraterno, Ricardo.

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    1. Obrigado pelo carinho, Malária!!! Seguimos firmes... ou tentamos seguir...

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  2. Bob, de longe fico triste contigo. Orarei por você. Pode contar comigo quando quiser. Só você não está. Abraço.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Meu querido! Como vai? Estou com saudades de você, não por isso, mas sempre. Estou triste com tudo que li, chorei ao ler cada palavra. Mas de longe sinto o que você está sentindo. Estou passando por uma parte disso, meu emocional não está bem, mas não é disso que quero falar. Bob, Luiz, iplépico, queridão, Botelho, amigo, irmão são vários títulos para ti, títulos que eu vejo em ti, que faz jus a você. Bob, eu estarei em constante oração, quero vê-lo bem, se setindo livre e animado com a vida,novamente. Estarei aqui sempre, para quaisquer coisa que precisar, irei aí quando der (ta faltando mês o final do dinheiro), quero ajudá-lo muito. "Deus está em missão" Beijos da Cuiabana aqui! :* :) :D <3

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    1. Minha querida Nay, amiga, companheira, artista, IPLépica... Obrigado pelo carinho e pela força que você me dá com cada palavra escrita... Seguirei lutando pra ficar melhor, é um processo longo, mas vai passar!!! Obrigado pela força sempre!!! Bjooo

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  5. Meu querido! Como vai? Estou com saudades de você, não por isso, mas sempre. Estou triste com tudo que li, chorei ao ler cada palavra. Mas de longe sinto o que você está sentindo. Estou passando por uma parte disso, meu emocional não está bem, mas não é disso que quero falar. Bob, Luiz, iplépico, queridão, Botelho, amigo, irmão são vários títulos para ti, títulos que eu vejo em ti, que faz jus a você. Bob, eu estarei em constante oração, quero vê-lo bem, se setindo livre e animado com a vida,novamente. Estarei aqui sempre, para quaisquer coisa que precisar, irei aí quando der (ta faltando mês o final do dinheiro), quero ajudá-lo muito. "Deus está em missão" Beijos da Cuiabana aqui! :* :) :D <3

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    1. Minha querida Nay, amiga, companheira, artista, IPLépica... Obrigado pelo carinho e pela força que você me dá com cada palavra escrita... Seguirei lutando pra ficar melhor, é um processo longo, mas vai passar!!! Obrigado pela força sempre!!! Bjooo

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  6. o que tenho para lhe dizer é que conte com minhas orações e apoio, tive que cuidar de uma tia com o mesmo quadro, pouco mais sei a dor e angustia que você deve ta passando! Mas como você citou ah momentos de vivermos a luta e declarar e gritar nossa dor isso ajuda. Grande abraço. Com carinho e cuidado de seu amigo Leonardo ( LeoFlames)

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    1. Graaaande Leo Flames, que alegria receber seu apoio, me sinto muito feliz e muito acolhido!! Obrigado pelo carinho!!!

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  7. Bob, não posso dizer que entendo o que vc está passando porque somente vc e Deus podem saber a dimensão de tudo isso. Mas mesmo a gente não sendo tão próximo, saiba que tenho um amor muito grande por ti. Até pq vc é meu irmão . Vou orar por vc mas também queria falar ctg de vez em quando... Vc tem usado o whatsapp? Queria fazer uma pergunta. Vc tem conseguido ouvir música, assistir filme, etc ?

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    1. Sou eu, Marcelli de Aracaju, namorada de Felipe... :)

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    2. Marcelli, minha querida, olá... Obrigado pelo carinho e pela atenção dispensada, significa MUITO pra mim!!! Suas orações certamente farão toda a diferença no meu processo e tratamento, obrigado por orar!!! Então, eu tenho tido dificuldade em assistir filmes, mas a música tem sido boa, as vezes... Eu tenho ouvido músicas que me ajudam a expressar o que sinto e isso é bom!!! Vamos mantendo contato sim... No meu post sobre oração eu deixei meu e-mail pra contato ;)

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    3. Amém, Bob :) um super abraço. A ABS de Aju te ama muito. Vamos mandar um email pra tu

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