Sobre lidar com que se pensa e sente

Eu realmente não gostaria de começar mais um post assim, mas infelizmente a verdade nem sempre é como planejamos ou desejamos. Surtei mais uma vez. Eu estava bem até que li algo na internet. A frase dizia: “Me apaixonei pelo ontem, tô ficando com o hoje e o amanhã tá me paquerando.”. Lê-la foi o gatilho para uma profunda crise. Foi essa frase que desencadeou mais um surto em mim!! Não bastasse lê-la no perfil do facebook, vi que quem me traiu reativou os laços com a pessoa com quem me traiu. O descontrole da situação, do saber se eles vão manter contato ou não, se eu vou ter que presenciar um novo relacionamento surgir, se eu vou ter que conviver com essa dor de ser trocado, isso tudo me tirou do controle normal da minha razão. De pensar que eu estava apenas indo excluir o meu facebook. Pelo que percebo eu exclui na hora certa. A pessoa veio a Curitiba e conseguiu socializar com todos os meus “amigos”. Aqueles mesmos amigos que agora me ignoram. A vida é saber lidar com decepções que surgem na jornada. Falamos sobre modernidade líquida, sobre relacionamentos por interesse e não vemos como o descarte de pessoas está mais próximo do que imaginamos. Ele acontece quando menos se espera de quem menos se espera. Já não tenho mais nada a oferecer no relacionamento e por isso sou simplesmente deixado de lado.

É, o caminho tem se apresentado mais doloroso do que parece, mas preciso confiar que cada passo dado nele é um passo de recuperação e libertação. O exercício de disciplinar meus pensamentos e sentimentos tem sido um desgaste real que vivo hoje, mas que tem que ser vivido. O drama de controlar a intensidade com que administro a realidade parece sufocar meu ânimo e sugar todo o meu vigor, mas tenho de fazer o meu melhor. Essa dinâmica toda parece muito difícil, nunca achei que a mente e os sentimentos pudessem trazer dificuldades tão grandes pro processo, mas existe solidez e esperança além do que eu penso e do que eu sinto e existe uma postura a ser tomada diante disso tudo. Meus sentimentos e meus pensamentos não podem determinar quem eu sou e como me comporto diante da realidade. Lembro-me do texto de Jeremias 17, que me ajuda a refletir sobre as posturas que tomamos diante do que pensamos, do que sentimos e de como nos relacionamos.
“ 5 Assim diz o Senhor:
"Maldito é o homem
que confia nos homens,
que faz da humanidade mortal
a sua força,
mas cujo coração se afasta do Senhor.
6 Ele será como um arbusto no deserto;
não verá quando vier algum bem.
Habitará nos lugares áridos do deserto,
Numa terra salgada
Onde não vive ninguém."
7 "Mas bendito é o homem
cuja confiança está no Senhor,
cuja confiança nele está.
8 Ele será como uma árvore
Plantada junto às águas
e que estende as suas raízes
Para o ribeiro.
Ela não temerá quando chegar o calor,
porque as suas folhas
estão sempre verdes;
não ficará ansiosa no ano da seca
nem deixará de dar fruto".
9 O coração é mais enganoso
que qualquer outra coisa
e sua doença é incurável.
Quem é capaz de compreendê-lo?
10 "Eu sou o Senhor
que sonda o coração
e examina a mente,
para recompensar a cada um
de acordo com a sua conduta
de acordo com as suas obras." ”
A vida toda eu achei esse texto muito abstrato e distante da realidade. O que é essa confiança no Senhor? Como se dá o confiar n'Ele? Como essa confiança se manifesta na dinâmica da vida e das relações? É bonito dizer que eu confio no Senhor, mas na prática eu preciso confiar nas pessoas. A vida é feita de confiança em pessoas e em situações. Levar a vida para esse campo abstrato de ‘confiar no Senhor’ não resolve nada no meu cotidiano o qual é composto de pessoas e situações e que é cheio de demandas e dificuldades. Precisei me tornar como um ‘arbusto no deserto’ (v.6)  para perceber toda a dimensão de realidade desse texto. Confesso que ainda estou no processo de aprendizagem, então não tenho como falar com toda a propriedade sobre “a maravilhosa vida de confiar no Senhor”, mas posso falar sobre a vida de quem sofre doente hoje a decepção que viveu com as pessoas por confiar nelas. Meu lugar de fala é também o lugar de quem vive o desgaste de lutar contra os ‘enganos de um coração incurável’ (v.9) que é perverso e cujas armadilhas só amplificam e potencializam o sofrimento e a dor.

Compreendo que a vida se dá a partir de relações. Toda relação é uma troca, um pouco de você vai com o outro e um pouco do outro fica em e com você. Cada troca tem sua intensidade variável, depende de como a relação se dá, de como ela se desenvolve, depende da disponibilidade de troca das partes envolvidas.  Há relações em que a troca é mais intensa e muito se deixa no outro e/ou muito fica do outro. A troca nem sempre é igual e isso merece atenção especial. Nas relações, corremos o risco de nos sentirmos em falta quando deixamos muito de nós no outro sem muito do outro ficar em nós e também podemos nos sentir sobrecarregados quando muito do outro fica sobre nós sem que estejamos disponíveis a entregar tanto de nós. Aprendemos (muitas vezes às duras custas) a confiar menos nos homens quando reconhecemos que as trocas quase nunca são iguais. Toda a relação pressupõe uma troca, mas a dinâmica da troca não é tabulada nem calculada. O coração do homem sofre e doi quando as desproporções da troca de uma relação sofrem um rompimento abrupto pela realidade. Eu experimento hoje a luta diária para conviver com minha doença mental porque experimentei uma frustração e um decepção que não cabem nas palavras aqui escritas. Muito de mim ficou no outro, me entreguei sem medidas a uma relação que hoje simplesmente não existe mais. Fui traído, essa é a verdade! Traído com todas as letras e em todos os sentidos. Muito foi deixado de mim mesmo e agora estou no processo de me recuperar em mim.

Na dinâmica do ministério, muito de mim ficou com muita gente, o ministério foi essa doação sem medida, esse entregar e deixar de mim nos outros em grande quantidade. Ao mesmo tempo, carreguei muito dos outros sobre mim por muito tempo sem ter onde depositar de mim. Aguentei muito de muita gente. Muita dor, muita demanda, muito conflito, muita crise e não dei lugar para deixar as minhas dúvidas, as minhas crises, as minhas angústias e contradições no outro. Não tinha um outro para deixar. Muito disso porque eu não me abri para os outros que se apresentaram a mim, isso é verdade, mas isso não foi regra. Já tive a experiência de resolver me abrir com quem muito tinha se aberto pra mim e recebi indiferença e rejeição. Disseram que me queriam como amigo e não “apenas como mentor” ou algo assim, mas não era verdade, pois quando me abri não fui acolhido. Hoje eu me percebo sem condições de oferecer nada a ninguém porque simplesmente não existe quase mais nada em mim de mim mesmo. Eu me doei, eu me entreguei. A necessidade fez com que essa entrega acontecesse e eu não medi esforços para me doar. Toda essa minha entrega, sempre descomprometida e sem uma segunda intenção, era, mesmo que inconscientemente, a entrega do meu coração. Eu amei a missão com tudo o que eu poderia amar e deixei muito de mim na missão esperando que a missão, como um fim em si mesmo, pudesse me dar o que preciso e acabei desiludido com o fato de que a missão como definidora de quem somos, como fator principal de nossa identidade, é limitada e cheia de imperfeições. A missão não é seu Senhor. O Senhor da missão não faz dela um fim em si mesmo!

Eu ainda fico fantasiando o reatar dos vínculos, ainda vislumbro um possível reaproximar de amizades, mas a realidade outorga sobre mim a aceitação de que ACABOU PRA SEMPRE! Muito dessa fantasia que eu crio pra mim vem do próprio fato de que eu não consigo e não quero aceitar a realidade do rompimento. Vem de um coração que engana. Eu errei, eu me doei demais, me entreguei demais, eu deixei muito de mim sobre outra pessoa e agora sou esse ‘arbusto no deserto’, seco, sem vida, podre e doente.

Eu sempre fui cristão, sempre fui muito intenso no exercício da minha espiritualidade e no cultivo da minha fé, mas tenho descoberto que não aprendi a confiar de verdade em Deus. Aprendi a confiar nas pessoas cristãs, aprendi a confiar na igreja, aprendi a confiar no ministério, aprendi a confiar na missão… Confiar em Deus é deixar que a maior troca de relação que possa existir na minha vida, seja a troca com Ele, onde tudo de mim fica n'Ele e muito d'Ele fica em mim e é fazer essa dinâmica transcender o campo abstrato e encontrar um lugar concreto nas nossas vidas. Nem as pessoas cristãs, nem a igreja, nem o ministério e muito menos a missão são capazes de me compreender completamente e de me ajudar na minha jornada atual. Só Ele pode me ajudar nas minhas angústias e é disso que preciso depender.

Recebi o carinho de muita gente desde que tornei meu diagnóstico público. Fui e tenho sido muito amado por muitas pessoas… Ao mesmo tempo sei que todo esse carinho é sincero e cordial, tenho aprendido a não depositar tanta expectativa no cuidado e no carinho das pessoas. As pessoas podem me abandonar, as pessoas podem me esquecer. Histórias comoventes deixam de ser comoventes e as pessoas se esquecem umas das outras. Isso não necessariamente significa menos amor, significa apenas que as pessoas seguiram com suas vidas. Eu nunca fui assim, sempre fiz questão de acompanhar os que amo e quero bem e de acompanhar muito bem acompanhado, sempre me senti culpado por “abandonar alguns” e por “não dar conta”, mas isso é mais uma coisa que preciso desconstruir. As pessoas seguem suas vidas. É possível que ninguém mais leia meu blog, que ninguém mais se importe. A vida e a realidade abrem essas possibilidades. Ainda que isso aconteça, preciso crer que Deus me ama e que a minha troca na relação com Ele me completa, me preenche e me sustenta no momento de crise. A troca com Ele é suficiente, pois eu sou amado d'Ele. Mesmo com o carinho de muitos, os amigos mais chegados simplesmente me abandonaram, me rejeitaram e me esqueceram (como disse no início do post). Essa dor de rejeição é enorme e me faz muito mal, mas preciso aprender e apreender que existe um amor maior que é suficiente e que supre toda essa carência deixada pelo ser humano. Isso não é abstrato e subjetivo, isso é concreto e muito prático! Ainda que eu não sinta toda essa concretude, minha fé faz essa verdade de amor ser sólida em mim.

Nesse processo todo, cada crise é um mistério, cada momento de surto é um desafio único que preciso encarar e que não é fácil. A preciosidade de resguardo que encontro nesse texto é poderosa para mim nesses momentos (ou deveria ser). Isso não significa que eu deixo de ter a crise, ou que o texto faz o surto ser mais tranquilo, o desafio permanece imenso, mas pelo menos no plano existencial eu posso tentar dar outro sentido que vá além da crise que me consome. Me ancoro no que o texto diz para tentar produzir um pouquinho de esperança para essa caminhada tentando torná-la um pouco mais leve. Meu coração é enganoso! Eu não tenho em mim e por mim mesmo o melhor conceito ao meu respeito! Minhas ideias, meus sentimentos e pensamentos não refletem a verdade.  Eu posso acreditar que não sou o que sinto e percebo ao meu respeito. A fé é o que ancora, consola e refugia o nosso coração e a nossa mente quando eles se perdem no engano. Podemos crer para além do que sentimos ou pensamos e sermos movidos por essa verdade  que abriga em solo firme nossa existência, nossa razão de ser e estar no mundo.

Todos os dias eu me atormento num medo avassalador de nunca superar tudo o que está acontecendo. Medo de não conseguir voltar pra universidade, medo de não conseguir estar nos espaços de novo, medo de nunca mais ter brilho nos olhos pela vida, medo de continuar doente mental pelo resto dos meus dias, medo dessa depressão não passar nunca. Todos os dias eu acordo com a enorme sensação de que esse inferno de doença mental não vai passar nunca. Todos os dias eu preciso fazer a minha fé ser mais forte do que todo esse emaranhado de pensar e sentir. O exercício é difícil, exige muito de mim, é intenso, mexe com a minha energia, tira meu vigor. Há certos dias em que eu não quero sair da cama, tamanho meu desânimo causado pelo que penso e sinto. Fico por horas deitado de olhos fechados orando e pedindo pra Deus que a força sobrenatural d'Ele me ajude a vencer. O silêncio do Divino nesse momento de angústia é perturbador, mas mesmo me sentindo abandonado, mesmo sentindo e pensando que Deus está distante e por vezes até duvidando da existência e do sentido d'Ele, minha fé faz com que eu continue orando e clamando, como disse no último post sobre oração.

Eu ainda estou muito amargurado, as feridas estão visíveis, expostas, latentes, doendo muito e me fazendo gritar de dor, mas o perdão e o tempo são meus aliados. Perdão não é sentimento imediato que surge no ímpeto de um “Eu te perdoo” lançado ao vento, mas não vou me dedicar muito a falar de perdão nesse post.

Acho que preciso aceitar que agora é um tempo de me resguardar mesmo. É um tempo de não aparecer muito, de não viajar tanto, de não estar tão fora e de estar mais dentro. Dentro de casa, dentro de mim mesmo. Estou aprendendo da pior forma que eu preciso aprender a viver comigo mesmo e a me sentir bem comigo! Fico aguardando ansiosamente o dia em que eu vou poder acordar, me olhar no espelho e sentir que eu estou bem, que a vida faz sentido e que o brilho nos olhos voltou.

Comentários

  1. Confiar que Deus está no controle de todas as coisas é um exercício diário, pois eu preciso estar ciente que o ser humano é falho e posso me decepcionar à qualquer momento. Mas confesso que é uma luta. Mas Deus nos fortalece.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, Deus nos fortalece... É aceitando o desafio diário e enfrentando-o dia após dia!!! Abraço carinho, Luzia.

      Excluir
  2. Sem querer colocar nenhum peso de responsabilidade sobre ti, vejo que atualmente tens feito missão através do "ministério do blog". Hahah

    Tão bom ser servida de Verdades!!!

    Que Deus lhe abençoe por isso (e/ou independente disto!).

    Obrigada!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Poxa, muito obrigado por esse retorno. É muito importante pra mim!!!

      Excluir

Postar um comentário