Existe vida no caminho!

Madrugada a dentro, eu aqui acordado, sem conseguir dormir, tamanha a angústia que me cerca. Ultimamente tenho estado bem desregulado no meu hábito de sono. Tenho virado noites acordado, sem conseguir dormir e dormido durante o dia. A dificuldade de acordar e de levantar da cama me deixa preso em um cansaço destruidor e arrebatador. É como se eu perdesse toda a energia pra conseguir sair da cama e encarar o dia. Com o sono desregulado, as madrugadas solitárias passam a ser minhas companheiras de jornada, onde fico tentando achar algo pra fazer que ocupe o tempo ou tentando me forçar a dormir (em vão). Os fantasmas dos meus pensamentos e sentimentos ainda me assombram e me tiram a paz e o sossego. Não consigo me estabelecer. Tento investir o pouco de energia que me resta e as migalhas do vigor que ainda possuo pra tentar me acalmar e ficar bem. Calma, é só mais uma noite ruim.

Nessa madrugada resolvi voltar o olhar pra mim mesmo e pro meu processo. Fiquei pensando sobre tudo o que já aconteceu no último ano e em como a minha vida foi do ápice da alegria para o mais profundo sofrimento. Já faz um ano da viagem dos meus sonhos. Representar o Brasil em uma Assembléia Mundial da Missão para a qual eu trabalhava. Passar vários dias com mais de 1200 pessoas de todas as partes do mundo. Eram 162 nações reunidas com um só objetivo, um só amor. “Juntos! Em Cristo, na missão e na universidade!” Esse era o lema do evento. Me senti pleno, me senti realizado!!! De pensar que meses depois eu estaria afundado em uma depressão profunda com surtos psicóticos que me tiram do controle de minhas emoções!!! Mataram a minha alegria por completa, meus sonhos foram roubados de mim e minha vida foi completamente destruída. O desafio agora é me reconstruir em meio aos escombros, remover os entulhos e destroços espalhados por toda a parte, limpar toda a sujeira deixada pelos lados, ver o que restou em pé e qual o estado do que ainda restou e resistiu a tudo e tentar me reconstruir. De certo que não vai ser um processo fácil e embora desistir seja um pensamento que me ocorre a todo momento, persevero tentando crer que um dia isso tudo vai passar.

Para olhar pra mim e pra tudo o que eu já vivi resolvi fazer um exercício ousado e que não sabia eu que exigiria muito de mim. Resolvi reler os posts do meu blog. É tempo de ver como organizava e como tenho organizado meus pensamentos e expressado-os até então. Reli todo o meu blog, post por post, um a um. Memórias de uma adolescência intensa e cheia de aventuras, lembranças de feridas e dificuldades que machucaram muito e finalmente, os últimos posts sobre o meu atual momento de fragilidade e humanidade.

Algumas coisas importantes de constatar e de perceber já me saltam os olhos logo de início. Pude ver que meu problema com surtos psicóticos não começou em outubro do ano passado, mas que episódios semelhantes aconteceram em 2013, quando sofri outra forte traição. E por falar em outra forte traição que me veio à memória, nesse processo, percebo como sempre fui muito frágil quando o assunto é relacionamento. Lembro-me do discípulo amado de meu tempo de ensino médio e como a relação com ele foi por vezes complicada e dolorosa. Como a rejeição do discipulado me machucou. Olho para um Bob que nunca soube se relacionar muito bem. Sempre com muita projeção, muita carência, um Bob obsecado por ter poder e controle sobre as relações. Vejo também um Bob muito carente e não resolvido em suas questões. Um Bob com medo de ser quem é e que se envolve com facilidade em tudo que possa dar um sentido para a sua vida. Um Bob que não se basta em si mesmo!

Fui refletindo sobre como mudei ao longo do tempo. Eu nunca imaginei que fosse pensar do jeito que penso hoje, de fato foi uma transição forte e intensa em todo esse tempo. Uma transição que teve marcas profundas que ainda não cicatrizaram. Algumas mudanças que me libertaram, outras mudanças que me aprisionaram. Entre leituras, experiências, relacionamentos, trabalho, viagens, eventos e mais um monte de outras coisas, fui me formando, me construindo e me desconstruindo ao mesmo tempo e vivendo esse paradoxo que sugere atenção e reclama seus cuidados.

Lendo o meu blog eu pude me deparar um pouco com a pessoa que eu era e a pessoa que me tornei. Um adolescente cheio de esperança, cheio de vida e de energia, cheio de sonhos e convicções, cheio de experiências e histórias. Um jovem cansado, ferido, amargurado, cheio de marcas que não cicatrizam, cheio de rancor e ódio, cheio de ira e revolta, cheio de indignação e repulsa, cheio de medo e assustado. Pude ver no que me tornei e no processo que me levou a ser como estou hoje. Usei a palavra estou porque não acredito que sou como estou! Esse Bob que hoje se apresenta, está assim por circunstâncias da vida, mas não é definido por elas. Lendo os meus posts eu pude perceber que fui me tornando mais crítico, mais intenso, mais enérgico. Fui guardando segredos, engolindo problemas, assumindo posturas, cumprindo compromissos. Fui me anulando, me anulando, até que fui por todos anulado. Já não restava mais nada de mim.

Fiquei percebendo como mudei também dentro desse meu processo que se iniciou em outubro de 2015. Vi como os meus posts iniciais eram muito mais sobre mim, sobre o meu processo e a minha experiência, posts que sempre traziam consigo um convite para o meu processo e a minha vivência sempre dialogando com uma reflexão que eu extraia em meio a todo o contexto de dor que me encontrava. Com o tempo fui me tornando amargurado, falando mais sobre a traição, sobre o que aconteceu e sobre como eu estava sofrendo. Percebi que comecei a ficar cego e surdo pela dor que estava sentindo. Eu não conseguia elaborar nada além de toda a ebulição de sentimentos que estava passando dentro de mim. Foi e ainda é muito difícil lidar com tudo!

Tirei tempo para boas conversas, tanto com meu terapeuta quanto com amigos próximos que tem me acompanhado nesse processo todo. Vi que estou tão amargurado e ferido que não estou conseguindo elaborar com a real dimensão o que tenho vivido. Não que a dimensão com a qual tenha elaborado até aqui não seja real, ela é tão real e legítima quanto qualquer outra. O ponto é perceber e acreditar (eu diria, esperançar) que existem outras dimensões pra além do que eu compreendo. Minha forma de ver, ouvir e sentir as coisas está impregnada de mágoas e amarguras. É como se eu estivesse contaminado e eu só conseguisse assimilar a realidade por filtros que tornam tudo mais pesado, mais difícil, mais doloroso!!! A dor da traição de quem muito amei, a rejeição dos amigos e despreso dos companheiros de missão, o julgamento e acusação dos que caminharam ao seu lado. Tudo isso faz com que eu me tornasse esse Bob amargurado e ferido de todos os lados por todas as pessoas.

O que quero propor hoje é pensarmos como a dor faz com que nossa forma de ver e perceber o mundo seja alterada. Isso não significa que a culpa seja nossa, ou que seja uma questão simples de resolver. Ninguém escolher sentir dor, ser ferido, ou sofrer. Meu sofrimento hoje não é culpa minha. Eu fui corrompido por outras pessoas.
"(...) da mesma maneira como o ato de se jogar um fósforo aceso em uma pilha de serragem deve naturalmente produzir fogo - embora a umidade ou a intervenção de uma pessoa mais sensível possa impedir que isso aconteça - , o ato de enganar um homem, "reprimi-lo" ou negligenciá-lo deve, naturalmente, gerar ressentimentos; ou seja, expor esse homem à tentação de tornar-se exatamente o que os salmistas foram quando escreveram essas passagens vingativas. Talvez ele consiga resistir à tentação, talvez não. Se fracassar, se morrer espiritualmente por causa do ódio que nutre por mim, como fico eu, que provoquei esse ódio? Além do ferimento original, eu lhe causei outro muito pior. Na melhor das hipóteses, eu trouxe uma nova tentação para a sua vida interior e, na pior, coloquei na vida dele um novo pecado que irá importuná-lo. Se esse pecado vier a corrompê-lo por completo, significa que, em certo sentido, fui eu quem o corrompeu."
C.S Lewis - Lendo os Salmos.
Quando olho para mim e me vejo amargurado e ferido, fico pensando em como resolver isso. O que eu faço? Como eu reajo? Não é simples fazer não doer! Não “basta uma decisão”, é mais complexo do que isso. Fico pensando no que devo fazer para ressiginificar a minha vida e todo o meu processo. Não é um caminho claro, com 10 passos prontos que eu devo seguir para alcançar a felicidade! Não existe manual de instruções com uma sequência de ações para se alcançar o objetivo. O caminho é escuro, cheio de neblina, com várias direções e encruzilhadas. Eu estou perdido nesse emaranhado de pensar e sentir. Quando paro e penso que já se passou mais de um ano e que tanta coisa aconteceu e também deixou de acontecer por conta de tudo isso que eu vivi. Recebi um diagnóstico de esquizofrenia por 7 meses, fui afastado em definitivo do ministério que tanto amava e para o qual me projetava trabalhar pelo resto da minha vida, perdi toda a perspectiva de futuro, tentei suicídio, fiquei afastado de todas as atividades, perdi um semestre inteiro na faculdade, enfrentei a solidão… a lista continua cheia de nuances e tenuidades. O Bob cheio de vida e que não parava agora teve que fazer uma pausa brusca, abrupta, violenta e intensa em seu processo. Eu perdi muita coisa nesse um ano e não sei o quanto mais perderei adiante por ainda estar nesse processo. As pessoas acham que basta uma decisão minha de “sair e viver a vida”, mas as pessoas não entendem que a vida foi tirada de mim. Ela me foi subtraída, foi tirada de mim, foi roubada… Eu estou no processo de reconstrução e reapropriação dela, mas isso não é fácil.

"Viverei com certeza um terço do que poderia viver porque todas as pedras me ferem, todos os espinhos me laceram. Dom Quixote sem crenças nem ilusões, batalho continuamente por um ideal que não existe; e esta constante exaltação, desesperada e desiludida, destrambelha-me os nervos e mata-me." Florbela Espanca
Minha jornada em busca de reconstrução perpassa uma complexidade muito própria do meu processo. Penso, a partir disso, que cada processo é tão cheio de complexidades próprias e inerentes a ele que importa reconhecermos que não é simples passar por ele. As pessoas são tão cheias de subjetividade, de contradições, de mistura. Caminhar com o outro é estar disposto a desvendar todo esse universo misterioso.

Só eu sei o quão difícil tem sido passar por tudo isso. Quanta dor, quanta angústia, quanta incerteza, quanto medo, quanto sofrimento, quanto ódio. Como disse no início, passar por isso me tornou uma pessoa muito cheia de mágoas e rancor. Ainda não sei muito bem como lidar com isso, mas sei que preciso me posicionar, preciso reagir a isso. O processo não acabou e eu estou no caminho da cura, eu preciso persistir, mesmo que esse caminho seja doloroso e difícil, preciso dar o próximo passo (que paradoxal isso, né? O caminho da cura não ser um caminho de alívio, mas um caminho de dor). Eu não posso retroceder, não agora. O desafio é conseguir me estabelecer.

Nesse processo de reler meu blog eu pude relembrar também diversos momentos importantes. Lembrei dos meus surtos e de todas as crises que eu tive, lembrei dos gatilhos emocionais que eu não conseguia lidar. Nomes, músicas, lugares, programas de TV, tudo era motivo para cair em surtos. Lembro-me de uma vez em que eu tive que passar por uma rua no centro de Curitiba que sai da Rodoviária da cidade e vai até minha universidade. Essa rua era extremamente emblemática no processo. Passávamos por ela todas as vezes que tínhamos nossos encontros furtivos escondidos de todo mundo. Uma vez, quando fui passar por essa rua, eu caí em surtos e estava sozinho. As vozes começaram a vir, o pânico tomou conta de mim. Eu chorei e gritei pelas ruas do centro, perdido, corri de um lado pro outro, parecia um louco. Tudo porque passei nessa rua. Olhar pra essa minha memória é dimensionar um pouco de como eu fiquei mal, de como eu fui destruído. Mas sabe, lembrar disso e perpassar essa memória é também lembrar que hoje em dia eu passo por essa rua e não tenho mais surtos. Olhar pra algo tão simples como andar por uma rua, mas tão cheio de significado é encontrar forças para resistir e não retroceder.

Certo dia eu estava na terapia e contei sobre a minha semana a meu terapeuta. Tinha sido uma semana difícil porque tive várias memórias e gatilhos que me remeteram ao meu passado. Enquanto contava ao meu terapeuta sobre a semana eu conseguia sentir toda a minha dor bater forte. Foi quando ele disse: “e dessa vez você não surtou”. Eu parei, fiquei sem reação, não sabia o que falar. De fato, eu não surtei. Quando se está no processo, valorizar os pequenos avanços é conseguir encontrar forças para perseverar no caminho. Eu não estou bem, a semana que contei ao meu terapeuta não foi boa, mas eu não surtei!!! Eu não estou recuperado e bem, mas de certo que estou melhor do que estava em outubro e novembro do ano passado!
Quando a dor e a amargura cegam sua visão e o medo e a angústia te deixam surdos para perceber o caminho, parar onde se está e perceber o caminho percorrido ajuda sempre a localizar o nosso lugar na jornada e também projeta para nós uma direção de qual será nosso próximo passo! É claro que eu não estou como gostaria de estar, mas sei que tive avanços que, embora pequenos, são significativos. Ainda tenho muito a percorrer, mas saber que já estou um pouco mais próximo da linha de chegada e mais distante do ponto de partida me faz acreditar que existe vida no caminho, ainda que seja um caminho de dor. Não demos grandes passos, não tivemos grandes avanços, mas caminhamos. É claro que ainda existe muito a se percorrer, mas já estamos um pouco mais perto do ponto de chega e mais distantes do lugar de onde partimos.

Quando parei para olhar minha jornada, me deparei com realidades que não percebi por causa da dor e da angústia. Senti na pele o que é a solidão, a rejeição e o abandono, isso é verdade, mas ao mesmo tempo, tive experiências de cuidado e de amor. É bem verdade que alguns (muitos) amigos me abandonaram e me rejeitaram. Mas é também verdade que recebi cuidado de onde não esperava. Amigos de longe, que me ligavam pra conversar e pra dividir o fardo, ou que mandavam mensagem frequentemente querendo saber de mim e da minha semana. Amigos que surgiram de onde eu não esperava, cuidado e amor vindo em forma de abraço dos mais improváveis. Talvez Deus não tenha cuidado de mim como eu sabia reconhecer o cuidado d'Ele, mas Ele não se fez ausente. Gritei Sua ausência e senti falta de Seu cuidado e amor manifestados a mim e o melhor disso tudo é que Ele, sendo Deus, respeitou isso em mim, respeitou meu processo e continou comigo até que, hoje, eu pudesse ver o que não via. Eu só não soube reconhecer. Os mentores que não desistiram de me ouvir diversas vezes e afirmar as mesmas coisas repetidas vezes para que eu não esquecesse. Eu só não soube reconhecer. Os mentores que não desistiram de me ouvir diversas vezes e afirmar as mesmas coisas repetidas vezes para que eu não esquecesse. Amigos que me ajudaram a ver os pequenos progressos. Amigos que me repreenderam quando eu ousei mirar um passo em falso e que se puseram a frente antes de que eu caminhasse na direção errada, mesmo que pra isso tivessem que ser mais enérgicos e firmes comigo. Amigos que souberam respeitar o meu silêncio e solitude, mas também souberam reconhecer e preencher a minha solidão. Amigos que não sabiam como lidar com minhas demandas, mas que aceitaram o desafio de descobrir como fazer isso caminhando junto.

Quando paro para pensar, reconheço facilmente que não são muitos os nomes que posso citar sobre esse processo todo, mas no momento de solidão, posso me refugiar na afirmação desses nomes. O caminho não foi fácil e não foi divertido!! Houve muita dor e ainda há. Gritei porque doía e porque sei que gritar é um direito meu! Mas, apesar da dor, vinculado à dor, manifestado na dor, concomitante à dor, implícito na dor, existe vida!! Esse caminho que percorremos em direção à cura é cheio de dor, mas existe vida nele e é nessa caminhado que aprendemos a reconhecer a vida!

Que possamos aprender a entender que mais vale o caminho do que o destino, e mais ainda, que o destino se faz no caminho e com o caminho! Reconhecer nosso lugar na trajetória e tudo o que dela ficou em nós, não é simples, não é fácil e você e eu não somos obrigados a fazer esse exercício facilmente!!! Não é porque você leu essas palavras que, pronto, magicamente você está super bem resolvido, as coisas ficaram claras e seguimos!!!!!! Deixa a dor doer do jeito dela…

“Sofrimento não se mede com régua por isso não nos cabe mensurar a dor do outro. A dor vai ter o tamanho que tiver que ter e vai durar o tempo que tiver que durar.”
Ainda na dor, existe vida!!! Que em meio à nossas lágrimas e gritos de dor, possamos respirar e sentir na pele toda a vida que existe!!

Comentários

  1. Parabéns pelos pequenos passos! Você é guerreiro! (Aline)

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    1. Aline, querida... Que felicidade saber que vc me leu e que tem me acompanhado!!! Obrigado por tudo até aqui!!! Sua amizade é importante pra mim!!!

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  2. Bob, siga firme. Como você mesmo disse, há vida na dor. Que, mesmo sendo tão difícil, você continue trilhando seu processo.
    Que Deus te abençoe muito. (Ricardo)

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    1. Ricardo, muito obrigado por ler e por ser tão carinhoso!!! Obrigado por me transmitir força pra continuar caminhando, mesmo em meio à dor!!! Que Deus te abençoe também!!! Forte abraço!!

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  3. não te conheço, mas estou orando pela tua vida, força Bob!!
    Que Deus transforme tua dor em testemunho!

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    1. Querida Joelma, obrigado pelo carinho e por toda essa consideração!!! É grato ao meu coração saber que recebo suas orações!!!! Por pessoas como você e orações como a sua, Deus tem sim transformado em testemunho toda essa dor!!

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